Entrevista com Joan Sintzer: “As mulheres perceberam que, embora houvesse uma representação simbólica de mulheres nas instituições, a realidade ainda era drasticamente desigual, e aí o feminismo se tornou uma questão novamente.”

“Eu estava frequentando o Pratt Institute de Nova York. Foi por volta de 1974, eu acho, e eu era uma boa pintora, estava fazendo pinturas realistas e adorava. Mas então comecei a fazer pinturas abstratas, e um professor veio até mim e disse: ‘Homens fazem abstração, mulheres fazem representação. Volte para as flores’”. Deparar-se com a realidade machista do mundo da arte fez com que a artista Joan Snitzer mergulhasse na experiência da A.I.R. Gallery, a primeira cooperativa de mulheres artistas dos Estados Unidos. Assim que soube da iniciativa, Snitzer logo integrou o grupo e tornou-se diretora da instituição, cargo que ocupou durante os anos 70. Na entrevista abaixo,  a professora e Diretora de Artes Visuais do Departamento de História da Arte na Barnard College/Columbia University comenta sobre os desafios de cruzar gestão e utopias em uma organização como a A.I.R., além de falar sobre aspectos do machismo dentro do cenário artístico de Nova York, da participação das mulheres nas artes visuais e das mudanças que ocorreram em relação às atitudes feministas ao longo das últimas décadas do século 20.

A entrevista com Joan Snitzer fez parte do projeto “Mulheres na Arte Contemporânea – A.I.R. Gallery”, desenvolvido em Nova York entre abril e julho de 2015 pela jornalista Isabel Waquil.  Contemplado no Edital Conexão Cultura Brasil Intercâmbios 01/2014, o projeto consistiu em uma pesquisa realizada através do método da entrevista sobre a A.I.R. Gallery, a primeira cooperativa de mulheres artistas dos Estados Unidos.

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ISABEL WAQUIL: Como era a cena de arte quando a A.I.R. foi fundada?

JOAN SNITZER: Eu acho que, em 1972, quando a A.I.R. começou, as mulheres não tinham escolha, a não ser participar de causas e organizações feministas, já que não havia lugares para expor ou para ser ouvida. Nessa época, havia uma pequena comunidade de arte em Nova York. Estava acontecendo uma recessão nos Estados Unidos e a cidade estava a caminho da falência; o preço de viver aqui era muito baixo. O aluguel da A.I.R. no Soho era em torno de 125 dólares por mês para um grande espaço térreo. Não havia mercado de exposições. Eu não sei se você pode imaginar, mas havia artistas que trabalhavam na cozinha, porque ninguém tinha um ateliê. Então, nesse período, este grupo de mulheres que se conhecia – para ser honesta, muitas delas tinham maridos que eram escritores, artistas e curadores, então elas estavam informadas – se reuniu e disse: “Vamos fazer esta galeria cooperativa”. Foi uma aventura barata, as mensalidades eram em torno de 25 dólares por mês, e foi esse grupo inicial que reformou o espaço da galeria. Era aquela época do “do it yourself”. Foi uma construção simples; elas colocaram as paredes e tiveram a ajuda de alguns amigos. Eram jovens e ativas. Então elas fizeram esta galeria no SoHo, um bairro que já tinha algumas galerias, mas não muitas. Era uma cena muito diferente. A A.I.R. tornou-se uma destas 10 galerias que você ia visitar. E as pessoas começaram a vir e a A.I.R. começou a crescer.

E como você entrou na A.I.R?

Bem, eu estava frequentando o Pratt Institute de Nova York. Foi por volta de 1974, eu acho, e eu era uma boa pintora, estava fazendo pinturas realistas e adorava. Mas então comecei a fazer pinturas abstratas, e um professor veio até mim e disse: “Homens fazem abstração, mulheres fazem representação. Volte para as flores”. Sabe, isso foi em uma grande sala de aula cheia de alunos! Uma amiga minha, uma colega de classe, veio até mim e disse: “Eu estava no SoHo e fiquei sabendo de uma galeria que é só de mulheres”. Então eu corri pra lá! Eu corri mesmo! (risos) No momento em que entrei pela porta, eu me senti de um jeito que eu nunca havia sentido em toda a minha vida. As pessoas eram amigáveis e vinham falar comigo. Eu imediatamente me inscrevi para ser voluntária. Eu não queria sair de lá. Era um espaço mágico. E quando me formei na faculdade, fui contratada como diretora da galeria. E assim aprendi a gerenciar uma galeria! (Risos)

Quais foram os principais desafios que a A.I.R. enfrentou em sua história?

No início tudo era utopia. Foi emocionante, não havia nada parecido. Ninguém podia acreditar o quão bem-sucedida a iniciativa era. Você tinha uma exposição, as pessoas vinham, revistas escreviam sobre as mostras… Para mulheres que estavam trabalhando e  lecionando, era uma coisa emocionante. O desafio veio mais tarde, quando as pessoas quiseram um reconhecimento monetário, o reconhecimento que elas estavam vendo em galerias comerciais. Não havia muitas galerias comerciais, mas alguns artistas conseguiam viver da venda de seus trabalhos e não precisavam de outro emprego.

O que você acha sobre a interpretação de que práticas exclusivas de mulheres podem ser excludentes?

Eu acho que essa interpretação foi mudando ao longo do tempo. Em torno dos anos 80, a economia americana estava prosperando e o mercado de arte mudou drasticamente. Tornou-se uma indústria de arte e havia muitas galerias abrindo. Ser um ativista ou estar em uma organização sem fins lucrativos não eram mais opções consideradas. Na verdade, eu acho que o feminismo ou a ideia de estar em um grupo de mulheres parecia um pouco como uma falha naquele momento. As pessoas não queriam ser associadas a iniciativas apenas de mulheres, elas queriam ser vistas de forma igual. Acho que isso aconteceu em muitos campos, não só na arte. E, por volta dos anos 90, parece ter havido uma redescoberta. As mulheres perceberam que, embora já houvesse uma representação simbólica de mulheres nas instituições, a realidade ainda era drasticamente desigual, e aí o feminismo se tornou uma questão novamente. Havia essa nova onda de questões e elas se tornaram mais complexas. A economia tornou-se mais complexa. Já não era mais barato morar em Nova York e manter uma prática artística aqui. Acredito que foi aí que as pessoas começaram a pensar “Espera, isso não está certo”.

Nos documentos da A.I.R., na Fales Library, é possível ver que a história da instituição é construída em reuniões, discussões, votações e diferentes formas de organizar a dinâmica da instituição. Como era esse processo de tomada de decisões? Porque parece muito democrático e organizado, mas também parece um processo exaustivo.

Sim, era muito exaustivo. E eu acho que o que você viu também pode ter sido um pouco inconsistente porque dependia da pessoa que estava fazendo as anotações do dia, e era a época pré-digital também.

Sim, às vezes estas notas eram escritas à mão.

Na maioria das vezes elas eram. Nem todo mundo tinha uma máquina de escrever. Foi realmente um desafio trabalhar com as necessidades de 20 mulheres. Eram mulheres com ideias diferentes do que é arte e com práticas artísticas muito diferentes. E este ainda é um desafio. Estamos unidas por uma causa de querer mudar a cultura em favor das mulheres, mas o quê isso significa para cada mulher varia muito. Isso tem a ver com as origens sociais, religiosas, culturais e econômicas das pessoas. Estamos falando de muitas artistas.

Como eram estas reuniões na A.I.R., naquela época?

As reuniões eram caóticas e engraçadas. Algumas integrantes tinham ideias muito claras sobre como a organização poderia crescer e trabalhar, enquanto outras ainda tinham  aquela ideia sobre o artista como um gênio individual. Então você tem essas diferentes posições e é claro que elas vão colidir. Eu fico impressionada com o fato de que conseguimos fazer coisas! (risos). Eu fazia as anotações frequentemente e ficava espantada que, de alguma forma, as coisas eram consideradas e resolvidas e as pessoas mantinham o coletivo. As coisas iam mudando e era muito bonito e divertido de ver. Houve algumas discussões acaloradas, mas ninguém era rude. Esta era a diferença: as pessoas queriam seguir em frente com a galeria e eles estavam dispostas a ceder as suas posições para o melhor para o coletivo.

Você acha que a missão da A.I.R. mudou ao longo dos anos?

Eu acho que a visão externa mudou: a necessidade de um coletivo de mulheres dentro desta indústria de arte e o significado de pagar uma mensalidade em uma galeria cooperativa ao invés de ser representada por uma galeria. Essas percepções a partir do exterior mudaram, mas, honestamente, a partir do interior, eu acho que o coração e a alma da A.I.R. e o compromisso de manter esta posição para as mulheres não se alteraram. É incrível. A paixão nas reuniões é tão incrível! Há a crença de que esta organização para mulheres tem um propósito, que ela necessita sobreviver. As reuniões naquela época e hoje são quase idênticas. As questões mudaram e as finanças certamente mudaram, mas as pessoas ainda são dedicadas à ideia. É realmente incrível ser parte dela.

A A.I.R. teve impacto na sua carreira?

Sim e não. Ele me deu os fundamentos básicos sobre os problemas que eu ia enfrentar sendo uma artista mulher. Ele me deu uma estrutura para compreender essas questões e também me deu  apoio para alcançar meus objetivos. Além disso,  tive a oportunidade de expor, ou seja, tive esse espaço para mim e pude ver como o público respondeu a esses projetos.

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Joan Snitzer: ”The Red Studio” – A.I.R. Gallery, 2013. Fonte: http://joansnitzer.com/

Você acha que o mundo da arte ainda é machista?

Sim, com certeza. Eu acho que até posso falar porque eu dou aula para mulheres – e mulheres muito inteligentes e bem-sucedidas – há quase 30 anos. Eu sei o que elas enfrentam quando começam suas carreiras. Minhas alunas se tornaram artistas bem-sucedidas, curadoras, escritoras de arte e galeristas. Elas têm participado de todos os aspectos da comunidade artística, então eu sei que o mundo da arte ainda é muito machista. Há ainda atitudes em relação às mulheres que são diferentes. Eu acho que nossa sociedade ainda é muito controlada pelo sistema do homem branco. Há pessoas que tentam mudar as coisas e há novas ideias acontecendo, mas, às vezes, eu me preocupo que essas não sejam mudanças na estrutura real do sistema. Este ano, pela primeira vez, o diretor da Bienal de Veneza é um homem negro africano, e a programação possui pelo menos 25% de artistas negros. Esta é uma grande mudança no momento, mas será que é um gesto simbólico ou é realmente uma mudança? Ainda vamos ver.

Qual você acha que é a questão para as mulheres no cenário artístico hoje?

Eu acho que as mulheres estão questionando quais são os seus lugares e como manter a integridade pessoal e artística além de uma sensibilidade artística. Tenho discutido muito este assunto com minhas alunas: se você quer ser bem-sucedida, e nossa história é uma história de sensibilidade masculina, você está quase obrigada a criar obras que apelem para essa imagem. E as mulheres têm diferentes sentidos, sensibilidades e preocupações. Elas tendem a ser isoladas porque não fazem parte desta estética dominante. Se você quiser fazer algo delicado, suave e bonito, então você já é marginalizada porque isso é “coisa de mulher”. Assim, como você mantém a honestidade e rigor artístico como mulher e como criadora se você tem que deixar essa sensibilidade de lado?

Então você acha que devemos desconstruir estereótipos? Como é que lidamos com esta questão?

Para mim, lidamos com isso através de uma rede muito mais forte de mulheres que apoiam umas às outras. Os homens se ajudam desde sempre; sempre se uniram sem nem sequer pensar nisso, porque é assim que eles são orientados. As mulheres ainda são mais isoladas. Elas não estão em posições de poder se não estiverem alinhadas com  homens poderosos. Então, elas tendem a isolar-se de fortes redes de mulheres. Na medida em que as mulheres se tornam mais poderosas, eu acho que elas também precisam mudar a forma como se relacionam com suas companheiras mulheres, construindo algo que seja valioso e sendo conscientes de sua posição como modelos a serem seguidos.

Como professora da Barnard, uma faculdade apenas para mulheres, você acha que a história da arte americana tem uma dívida com artistas mulheres?

Sim. Nós herdamos da Europa Ocidental essa sensibilidade – não da Europa Oriental, onde eu penso que houve mais solidariedade com as mulheres e as coisas eram um pouco diferentes lá, antes de a situação econômica mudar. Os ideais americanos sobre o individualismo e a capacidade de haver mobilidade social e econômica ajudaram algumas mulheres a se tornar bem-sucedidas, mas eles não ajudaram as práticas artísticas, porque a ideia americana de individualismo entra em conflito com esta noção de redes coletivas, de colaboração.

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Joan Snitzer – CO203. 2014. Acrylic, photo ink, and vinyl on birch panel. 36x48in. Source:http://joansnitzer.com/

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